Crítica: Muribeca
“Muribeca”, é um documentário com direção de Alcione Ferreira e Camilo Soares que fala sobre o Conjunto Habitacional Muribeca, no bairro de mesmo nome do documentário, em Jaboatão dos Guararapes, município situado em Pernambuco. Na verdade, não fala exatamente do conjunto, mas do que o envolve, partindo da sua destruição e passando especialmente pelo seu passado, através de relatos de pessoas que viveram lá.
A ideia do documentário foi pegar a câmera, apontar para alguns residentes do antigo conjunto e deixá-los falar. Os relatos dos moradores da Muribeca englobam muita coisa. Arte, esporte, religião e, especialmente, a afetividade em torno do conjunto. E também a relação desses primeiros aspectos citados com o último. Essa afetividade nada tem a ver com o local em si, claro, mas com as relações construídas ali. As festas, blocos de carnaval, provocações e conversas eram comuns naquele lugar que representou para seus milhares de moradores um sentimento. Muribeca não era só um conjunto, era um sentimento. Agora, um cemitério de memórias vivas. Ou de pessoas vivas, nas palavras de uma das entrevistadas do filme. Em resumo, a obra é quase uma homenagem às memórias do lugar enquanto símbolo de alegria e fraternidade representado pelas pessoas que falam à câmera.
Obviamente, a alegria não foi o único tom dos relatos. Até porque se fosse, o documentário nem existiria, afinal é pautado na destruição do conjunto. O que mais se sente nas vozes e palavras dos antigos moradores é a dor. A dor de perder uma vida sem morrer. De ser forçado a abandonar o lugar, o sentimento, as pessoas que construíram cada um daqueles seres. E o filme se destaca ao intercalar os relatos de sofrimentos e memórias com vídeos passados que representam a alegria e a união da comunidade servem para criar ainda mais empatia, e um toque de extrema sensibilidade: o silêncio. Entre um depoimento e outro, o silêncio predominava. Com imagens ao mesmo tempo lindas pela fotografia admirável, mas horríveis porque o que se mostra são resquícios de destruição, de abandono, em tons mais acinzentados, diferente daqueles vídeos antigos, reforçando a sensação de profunda mudança para pior.
Apesar da nobre ideia de dar voz àquelas pessoas que foram covardemente expulsas de suas casas, “Muribeca” me pareceu como um grande potencial desperdiçado. A essa altura do texto, você provavelmente criou certa empatia com a situação dos moradores do conjunto, mas não entendeu direito a situação. Não sabe quem os expulsou, não sabe o processo, não sabe a resistência. E foi assim que me senti assistindo ao documentário. Isso porque o filme separa seus créditos para explicar a parte mais importante de todo o imbróglio em poucos segundos, aparecendo escrita no final. Essa simples explicação teria atribuído uma força muito significativa a tudo que foi visto anteriormente. Se a intenção era, de fato, gerar essa empatia ou criar um sentimento de revolta, ao esperar toda sua duração para falar o que eu passei 70 minutos sentindo falta, o filme, assim como a Muribeca, se tornou um cemitério, mas um cemitério de tempo e potencial.
Os relatos dos moradores falaram muito sobre eles terem sido retirados de suas casas e citam, de maneira breve e confusa, os interesses imobiliários como o problema da questão. E eram mesmo. Entretanto, isso não é devidamente explorado. No começo do documentário, a primeira entrevistada já deixa um impacto ao relembrar a marchinha “Daqui não saio, daqui ninguém me tira” e dizer que a letra não se aplicava à Muribeca. Outro disse: “Eu tinha um sonho recorrente de um avião que caía em Muribeca e destruía boa parte dos prédios. Nunca caiu nenhum avião, mas os prédios foram destruídos”. Muitas pessoas disseram ter sido retiradas de suas casas no conjunto enquanto relembravam suas memórias do lugar, mas, nesses momentos, não houve uma preocupação por parte do filme de falar quem retirou e os motivos, deixando tudo no campo da abstração. Se a situação fosse explicada desde aquele momento, aquelas palavras teriam ainda mais mais força e efetividade dentro da proposta do longa, que, repito, é muito nobre e urgente.
A decepção vem de onde se espera algo. Claro que se espera algo numa obra que, em meio de imagens, memórias e palavras realmente bastante bonitas, explora um assunto importante e bota em contradição o fato de os mesmos que te expulsam são os que te dão como opção para refúgio. No caso do documentário, o sentimento de decepção é porque sua construção faz com que tudo isso possa passar despercebido, enquanto poderia ser um verdadeiro grito de justiça não só para as pessoas daquela área que, mesmo morta, é tão cheia de vida, mas para o problema maior que o tema traz. De todo jeito, ainda há muito de positivo para além do que já foi dito. Se o documentário possivelmente não cumpriu o papel que se propôs a cumprir, não dá para dizer o mesmo de “Resistência Muribeca”, rap tocado ao fim do filme para servir como um fechamento, mas que, vindo das cabeças das pessoas que passaram na pele tudo que aconteceu no lugar, explica melhor que ninguém a situação e, como a letra diz, a dificuldade de apagar da memória o que o corpo tatua na alma.