Crítica: A baleia
“A Baleia” é um filme que te coloca, durante quase 2 horas, num só ambiente: o pequeno apartamento de Charlie, um professor que, com seus 270 kg e todas as complicações de saúde que seu peso e seus hábitos implicam, além de inúmeros traumas que já começam a ser apresentados desde o começo do filme, vive uma vida triste. Não só pelas condições da vida do protagonista, especialmente a iminência da morte, mas pela forma que Darren Aronofsky filma a situação. A iluminação bem baixa em todo o filme e as cenas que são feitas simplesmente para expor a situação do personagem acompanhadas da interpretação de Brendan Fraser e da trilha sonora são componentes que te comovem especialmente pela tristeza que eles transparecem. O filme retrata 5 dias, mas te fazem refletir sobre anos e anos da vida de Charlie, de Ellie e também de Liz e Thomas, os coadjuvantes que – muito bem interpretados por Hong Chau e Ty Simpkins – são parte fundamental para o entendimento dos traumas do protagonista que movem a trama.
O filme trabalha com duas temáticas principais muito delicadas. A primeira, talvez não a mais importante, mas a mais perceptível, é a obesidade mórbida de Charlie. Não ela e suas consequências na vida do personagem por si só, mas muito da relação de outras pessoas ao ver alguém nessa condição, explorando estereótipos que o próprio roteiro martela ao constantemente usar “nojento” como adjetivo para se referir ao protagonista e, de certa forma, retratar uma culpabilização que é colocada na pessoa que vive essas condições, como se todo o contexto imensamente traumático e os vícios do personagem não fossem o real problema ao ponto de que, repito, muito apoiado na trilha sonora e na atuação de Fraser, a simples ação de comer se tornasse nos momentos de maior tensão que o filme tem, aparecendo como um chocante ato de rebeldia de Charlie, se não até uma maneira de suicídio, tendo em vista os intermináveis problemas de saúde do personagem advindos da obesidade que pioram com seus hábitos alimentares. A relação do próprio Charlie com tudo que seu próprio corpo o implica é uma temática óbvia nesse contexto. A vergonha de si próprio que o faz nem sequer abrir a porta da própria casa para receber os fast foods que chegam todos os dias e nem abrir a própria câmera nas aulas online de redação que ele ministra são elementos que reforçam a tristeza do filme.
Apesar do filme girar muito em torno da obesidade de Charlie, o outro ponto principal da trama, ao meu ver, é o desequilíbrio da relação entre pai que abandona e filha abandonada e como ele aborda as complexidades da situação, causando no telespectador, para ambos os personagens, as simultâneas sensações de empatia e raiva por tudo que envolve o contexto do roteiro de Samuel D. Hunter, adaptando sua própria peça para as lentes de Aronofsky, que, em algumas cenas, faz mesmo parecer um teatro, especialmente pelo uso de um ambiente único, poucos atores(seis no total e um deles só aparece por poucos segundos) e as saídas e entradas do apartamento sendo observadas pelas sombras que vêm e vão pela janela fechada, usando de maneira criativa o espaço da filmagem.
Dentro dessa temática principal, Charlie, sendo um professor com domínio de todos os aspectos técnicos que compõem um texto, leva como segundo maior propósito da sua vida e sua profissão a autenticidade impressa nos textos que corrige. E esse é o segundo maior porque o maior propósito é sua filha Ellie(Saddie Sink), que, mesmo sendo vítima do abandono do pai e um relacionamento conturbado e abusivo com sua mãe, entre infinitos motivos para ser a “vilã” da história não só para quem assiste, mas para seu próprio pai – ao mesmo tempo em que ele representa um vilão para a garota por causa do passado dos dois -, ostenta, talvez sem saber, a qualidade que Charlie mais valoriza: a sinceridade. Na verdade, talvez só seja a característica mais valorizada pelo personagem porque é o que sua filha mais oferece. Talvez a única coisa positiva, se é que é positiva, além do talento para escrever. Não afirmo que é positiva porque essa autenticidade de Ellie é até sádica e, como quase tudo no filme, triste, mas não deixa de ser mais do que um orgulho para o pai, mas, aparentemente, até o único motivo que o faz ter algum apreço pela curta vida que lhe resta, enquanto interpreta seus textos, que são representações da vida da adolescente, como alegorias que parecem de perfeito encaixe para a vida dele, a vida de alguém que quer se libertar de algo, mas, no fundo, sabe que aquilo não vai deixá-lo em paz, pois não o livra de seus traumas e remorsos irreversíveis.
O filme brilha e se embeleza, apesar de continuar triste, ao expor as contradições da vida de Charlie. A autenticidade que ele admira em sua filha e, ao longo do filme, vai amadurecendo como sua característica favorita em qualquer pessoa é, na verdade, o que mais lhe falta. A vergonha imposta nele mesmo por conta de seu corpo e dos estigmas em cima dele tira de Charlie a sua capacidade de ser sincero. Como você pode cobrar de seus alunos que sejam o mais autênticos possíveis quando eles nem conhecem seu rosto e sua vida? Como você quer transparecer ser alguém tranquilo se, dentro da sua casa, isolado do mundo, não vive um segundo de paz consigo mesmo? Por que ele quis se reaproximar de sua filha, sob o pretexto de ajudá-la na escola, sabendo que poucos dias lhe faltavam?
Todos esses paradoxos, que vão sendo desenvolvidos de forma sutil durante o longa, pautam o filme e geram reflexões interessantes, assim como a noção de que a “baleia” de Charlie, fazendo referência ao texto de sua filha sobre o livro Moby Dick com significado de ser algo de que a pessoa precisa se libertar, talvez não seja só sua saúde, mas principalmente sua falta de autenticidade advinda de seus traumas. No fim, o filme é como a história de alguém que quer mudar o imutável e sabe que não vai mudar, sabe que não haverá recompensa, mas, na verdade, a recompensa chegou. Não da forma que se imaginava, mas chegou. O final do longa deixa isso claro e emociona por isso.